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Ficção Americana – Uma crítica à agenda Woke?

Atualizado: 6 de abr.



Introdução


O filme Ficção Americana (American Fiction) do diretor Cord Jefferson, foi um dos indicados para o Oscar de melhor filme em 2024. Esse é o primeiro filme dirigido por Cord Jefferson, que já trabalhou como roteirista e produtor em diversas séries para a TV e para streaming, incluído “Succession” e a ótima comédia “The good place”. O filme teve como base o romance “Erasure” (2001) do escritor estadunidense Percival Everett. O filme se destaca pela sua sátira bem elaborada em torno dos estereótipos construídos ao redor da comunidade afro-americana que de certa forma forçam os escritores negros a serem notados somente quando reforçam esses estereótipos.


Resumo




A cena inicial é muito elucidativa sobre o tema a ser abordado no filme. O professor de literatura Thelonious Ellison pergunta aos alunos sobre suas visões a respeito do conto que ele anotou na lousa. Trata-se de "The Artificial Nigger" (O negro artificial) da escritora sulista Flannery O'Connor. Uma das alunas questiona o professor sobre o uso da palavra “Nigger” que é um termo que carrega um significado muito ofensivo direcionado à população negra.





O professor, sarcasticamente, diz para a aluna não se preocupar, pois se ele, que é negro, conseguiu superar isso – o uso dessa palavra – para ela, que é branca, não seria tão difícil. Há um corte na cena e de repente vemos a mesma aluna saindo da sala aos prantos enquanto o professor demonstra sua agressividade evidente com os alunos. Tal evento levou seus pares a repreenderem-no. Oferecem-lhe uma folga de suas aulas para se recuperar de tanto estres.


Além disso, Monk Ellison – como é conhecido pelos seus amigos – vem sofrendo uma pressão de seus colegas da universidade, pois ele não consegue publicar um livro há anos. Ele recebe a notícia de seu agente dizendo que seu novo livro foi recusado. É a 9° editora que rejeita seu texto, que parece ser uma reformulação de “Os Persas”, clássica tragédia de Ésquilo. Sempre alegam o mesmo, “seu livro é primorosamente elaborado com personagens totalmente desenvolvidos e linguagem rica, blá-blá-blá, más não tem nenhuma ligação com a experiência afro-americana.” Afinal, Monk é um autor negro. No entanto, seus romances não abordam a realidade da comunidade negra dos EUA.





Ou seja, aqui podemos notar que Monk Ellison vem sendo rejeitado pelas editoras porque o que ele escreve não é o que o público espera de um autor negro – ou pelo menos é isso que alegam. E é exatamente isso que vem deixando nosso protagonista puto da vida. Monk vem de uma família bem abastada de médicos, seu pai era médico e seus dois irmãos são médicos. Ou seja, todos bem-educados e criados longe dos guetos relegados à comunidade afro-americana.

Monk é um crítico da literatura identitária que, segundo sua forma de ver, fortalece os estereótipos atribuídos aos negros americanos. Há uma cena em que ele está conversando com seu agente que acabava de dizer-lhe que seu romance foi recusado. Monk diz: “o que eles querem? Querem que eu escreva sobre um policial matando um adolescente ou uma mãe solteira criando seus 5 filhos em uma comunidade afro-americana?” Ou seja, isso é que todos esperam de um escritor negro, segundo o mercado editorial.



Em uma feira literária, que ele participou em Boston, Monk fica sabendo de uma escritora negra cujo novo romance está vendendo horrores, e ele consegue ver um pedaço de sua palestra onde ela lê um trecho de seu bestseller, que gabarita todos os estereótipos colados na população negra americana. Violência policial, filhos sem pais, pobreza, gravidez indesejada etc. Sem contar que a linguagem utilizada no romance remete à língua atribuída à comunidade negra americana, e que muitas vezes é vista de forma pejorativa, pois não obedece à norma padrão da língua inglesa.


Isso vai minando a paciência de Monk. Em um determinado momento ele resolve escrever uma história utilizando todos esses estereótipos criados por romances identitários, mas a gente entende que ele faz isso só de sacanagem, uma forma de trolar as editoras. O filme mostra uma cena em que ele começa a escrever esse romance, e notamos que o teor é bem caricato e exagerado.



O diretor e roteirista - Cord Jefferso


Um gângster da quebrada discutindo com um sujeito bêbado que ele descobre, durante o diálogo, que é seu pai e depois ele simplesmente atira no cara. Essa cena é forte, mas bem hilária, porque ele brinca com a criação dos personagens, ele vai criando os diálogos e chega um momento em que os próprios personagens começam a dialogar com o escritor, discutindo qual seria a próxima fala. Sem dúvida, uma bela quebra de linearidade.


Ao finalizar o romance Monk envia para o seu agente para que ele tente vender para alguma editora e para isso ele cria um pseudônimo, Stagg R. Leigh. A grande surpresa ocorre quando ele descobre que seu romance — que ele havia escrito só de zoeira — foi aceito, inclusive por uma grande editora e com um adiantamento volumoso, algo como 700.000 dólares.


Imagina a situação. O cara vinha passando por um problema familiar em que sua irmã havia falecido recentemente e seu irmão estava tendo sérios problemas com drogas e ele ficou responsável por cuidar de sua mãe idosa que havia sido diagnosticada com Alzheimer. Então me diz aí, o que você faria? Diria que o livro era só uma piada, ou investiria na ideia, mesmo sendo um crítico mordaz daquele tipo de literatura?



Flanery O'Connor - Escritora de "The artificial Nigger"


Como podemos ver, a cômica história da publicação do livro não é o único plano narrativo desse filme. Há um segundo plano onde é contado um drama familiar que envolve a morte repentina de uma irmã, o diagnóstico de demência da mãe e a recente saída do armário de um irmão que vinha se afundando nas drogas além da nítida incapacidade do protagonista em se manter em um relacionamento afetivo.


Monk até que tentou fazer a editora não publicar o livro, dizendo que gostaria de mudar o título que havia dado para o livro de “My Pafology” — a grafia errada da palavra mostra um estereótipo de atribuir erros gramaticais e gráficos a língua dos negros — para “Fuck”, (foda-se). Surpreendentemente, os editores compraram a ideia, na verdade, eles acharam até mais apelativo o que aumentaria o alarde em torno da obra. Ou seja, agora Monk terá que lidar com essa nova persona que criou, e para ajudar – ou atrapalhar – seu agente inventa uma história de que Stagg R. Leigh é um foragido da justiça, por isso não pode aparecer em público.

 


Reflexão

A meu ver, o roteiro de Ficção Americana não é um primor que valeria um Oscar, mas é bem divertido, e tem algumas sacadas bem elaboradas. Ele brinca com o fazer literário e expõe as prerrogativas hipócritas do mercado editorial.

Até que ponto a identidade da comunidade negra está livre da exploração do mercado? Será que os produtos culturais que exploram questões identitárias não estão chegando a um ponto de esgotamento em que somente o mercado pode se beneficiar disso? Esses são questionamentos válidos, que nos permitem pensar no papel do escritor, seja ele, preto, indígena, gay ou branco heterossexual e nos temas e na expectativa que criamos em cima de cada um deles. É sempre necessário que dividamos todas as obras em nichos? Há limites para nossa criatividade ao contarmos histórias?



O ator Jeffrey Wright, o escritor Percival Everett (ao centro) e o diretor Cord Jefferson


A cena inicial, em que o professor Monk praticamente expulsa sua aluna da sala por não concordar com o uso da palavra “Nigger”, vem sendo aplaudida de pé pela galera da extrema direita. Afinal ela meio que detona a lacração de grupos identitários afoitos por denunciar a desigualdade. E a caracterização da aluna woke é por si só um outro uso de estereótipo, uma menina branca de camisa xadrez e cabelos azuis. Ou seja, a galera libertária – que acha que não há mais racismo no mundo – entendeu que o filme é um tapa na cara da cultura “woke”. Mas, creio que se um sujeito chegou a esse tipo de entendimento, não deve ter assistido o filme todo.


O filme denuncia o racismo em vários momentos. Por exemplo, quando Thelonious é ignorado por um taxista, que para 10 metros adiante para um cara branco. Ou quando os membros de uma banca de um concurso literário fazem uma votação e o livro campeão recebe três votos contra 2 e os dois votos vencidos eram de negros. Ou seja, podemos ver pílulas da chamada agenda woke em várias partes do filme. O filme tem realmente uma pegada meio ambígua, o que a meu ver é proposital.


Ao mesmo tempo em que joga um biscoito para uma galera mais conservadora, apresenta um personagem branco fútil e sem capacidade mental suficiente para notar que está sendo manipulado pelo mercado editorial. Essa estrutura narrativa tem a ver com o tipo de mercado consumidor que temos nesse momento. A indústria cultural está em busca de “likes”, por isso, tem uma postura baseada em algoritmos. Quanto mais pessoas você agradar, melhor para o desempenho de seu produto.






O filme traz questionamentos interessantes sobre a exaustiva utilização de estereótipos e termos identitários de forma exacerbada e sua exploração pela indústria cultural. Ou seja, é uma crítica ao mercado de uma forma geral, que ao alegar dar voz a minorias oprimidas, acaba por perpetuar preconceitos, por criar uma visão muito estreita de certas identidades culturais. Relacionando negros com a pobreza e a criminalidade, por exemplo, como se essa fosse a única opção plausível na hora de se criar um personagem.


Mas essa crítica também pode ser vista como um alerta em relação a demarcação restrita de certos territórios semânticos que pode nos levar a uma hierarquização de julgamentos a respeito das obras de artes. Isso pode nos desviar do aspecto criativo e artístico da obra para dar mais crédito ao quão comprometida ela está com alguma questão social ou identitária, desprezando neste processo eventuais boas histórias.


De forma alguma eu pretendo criticar as lutas identitárias em seus aspectos sociais. O racismo, a misoginia, a homofobia, o preconceito de classe etc. Tudo isso deve ser combatido duramente e de forma exemplar. A questão que me vem é se o mercado não está transformando essas discussões em produtos lucrativos e de certa forma apequenando a luta dessas minorias, lançando-as em outras formas de opressão, como limitar sua criação artística às exigências da indústria cultural.


Então fica aqui minha pitada de provocação em relação a essas discussões trazidas pelo filme "Ficção Americana”.




Ficha técnica:

Título: Ficção Americana

Título original: American Fiction

Diretor(a): Cord Jefferson

Ano de Lançamento: 2023

Gênero: Comédia












André Stanley é historiador, professor de Inglês, espanhol e português para estrangeiros. Autor do livro "O Cadáver", editor do Blog do André Stanley. Possui um canal no Youtube onde fala de literatura, design e outros temas. Colaborador do site Whiplash, especializado em Heavy Metal. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys. Também é fotógrafo e artista digital.


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