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A Casa de Doces - Um belo desdobramento de "A visita cruel do tempo"

Atualizado: 30 de jan.



— Eu estou com um desejo - disse Bix, de pé ao lado da cama, alongando os ombros e a coluna, um ritual que fazia toda noite antes de se deitar. — De simplesmente conversar.
Lizzie olhou por cima dos cachos pretos de Gregory, o caçula deles, que mamava em seu peito.

A Casa de doces é o livro mais recente da fenomenal escritora estadunidense Jennifer Egan. Neste livro, Egan volta a explorar o universo vivido por vários de seus personagens de “A visita cruel do tempo.” Livro que explora o mundo da música, retratando roqueiros decadentes e punks frustrados. Adotando uma narrativa construída por meio de vários contos que se intercalam, o livro foi um sucesso de público e de crítica, afinal essa obra rendeu a ela o Prémio Pulitzer de literatura em 2011. Eu não diria que “A casa de doces” seja uma continuação de “A visita cruel do tempo”, mas sim uma extensão, ou um desdobramento das reflexões que ela fez naquele livro. Por exemplo, como o rápido avanço tecnológico afeta a forma como nos relacionamos e como o tempo é uma figura implacável.


Leia nossa resenha de A visita cruel do tempo.


Vários personagens de “A visita cruel do tempo” reaparecem aqui em momentos diferentes de suas vidas. Vale mencionar que agora, Jennifer Egan dá voz à personagens secundários de “A visita cruel do tempo”. Por exemplo, os produtores musicais Bennie Salazar e seu guru Lou Kline são retomados sob a perspectiva de seus herdeiros, no caso de Lou, serão suas filhas Melora e Lana que terá que lidar com a manutenção do império que o pai construiu na indústria musical em um mundo onde você pode ouvir músicas de graça em plataformas de streaming. Lou Kline, já em seus derradeiros dias de vida, representa aqui a própria indústria fonográfica analógica que agoniza.


 

Capa de "A visita cruel do tempo" romance que deu o premio Pulitzer de literatura para Egan em 2011

O filho de Bennie Salazar, que em “A visita cruel do tempo” era um garoto que acompanhava o pai nas suas buscas por novas bandas de garagem para produzir, agora ganha protagonismo ao ser uma figura chave em um mundo permeado pela guerra de narrativas entre os perpetradores do uso desorientado de tecnologias e aqueles que defendem elementos restritivos baseados em questões éticas.

 

Lincoln, o filho autista de Sasha Blake – a outrora assessora cleptomaníaca de Bennie Salazar – que em “A visita cruel do tempo” é apenas mencionado pela irmã em uma apresentação de slides, como um garoto aficionado por pausas de músicas, em “A casa de doces” é apresentado um recorte de sua vida onde ele é um eminente analista estatístico lidando com sua forte incapacidade de se relacionar afetivamente.

 


O livro tem início com Bix Bouton – talvez o único personagem negro nesse universo – caminhando erraticamente pelas ruas de Nova Iorque. Em algumas linhas já saberemos que Bix é ocasionalmente assombrado pela morte prematura de seu amigo Rob, que se afogou nas águas do East Ríver 17 anos atrás enquanto nadava com seu outro amigo Drew. Ambos eram amigos em comum de Sasha, e foi uma discussão sobre ela, regado ao uso de entorpecentes, que fez com que ambos entrassem na água aquele fatídico dia.

 

Para quem está familiarizado com “A visita cruel do tempo” se lembrará dessa cena insólita de afogamento que envolve alguns personagens-chave daquele romance. Em “A casa de doces”, Bix é um dos protagonistas – se é que podemos apontar protagonistas nesse romance polifônico. Bouton é um tipo de celebridade. Ele foi o fundador de uma rede social com caráter monopolista, algo como a Meta de Zuckerberg.  


O trecho a seguir mostra as qualidades proféticas de Bix Bouton.

Lizzie e seus amigos mal sabiam o que era a internet em 1992, mas Bix sentia as vibrações de uma rede invisível de conexões abrindo seu caminho à força pelo mundo como o conhecíamos, como rachadura craquelando um para-brisa. A vida que levavam logo seria estilhaçada e varrida, momento em que todos ressurgiram em uma nova esfera metafísica.

Bix tem um insight após ter contato com um grupo de estudos acadêmicos sobre uma obra de uma antropóloga que estudava tribos na Amazônia brasileira. Seu nome era Miranda Kline – não é coincidência, Miranda foi casada com Lou Kline por um período bem curto, ela é mãe de Melora e Lana.. Nesse grupo de estudos, havia uma pesquisadora que estudava a externalização de consciência de animais. Bix se inspirou nesses estudos para criar sua grande obra. Um equipamento que permite armazenar todas as memórias que construímos no decorrer de nossas vidas, sendo possível compartilhá-las em um tipo de consciente coletivo que é, na verdade, uma nuvem digital, onde todos têm acesso a tudo que é compartilhado.

 


Ou seja, estamos falando de fazermos um upload de nossas memórias. Externalizá-las e armazená-las em um tipo de HD onde podemos ter acesso quando quisermos. Imagina se uma pessoa tem uma doença horrível como o Alzheimer, por exemplo, essa possibilidade seria muito promissora, pois a pessoa teria suas memórias preservadas, mas será que isso não implicaria em problemas éticos e usos indevidos dessas memórias por governos ou as próprias empresas que prestam esse tipo de serviço de armazenamento digital de memórias? Essa é a premissa do romance. São questões como essa que todas as histórias narradas em “A casa de doces” vão nos fazer refletir.


Outra constatação bem evidente no romance é de que há vários personagens que travam sólidas batalhas contra o vício em medicamentos opioides ou mesmo em heroína, expondo outro problema bem atual vivido pela saúde pública dos EUA.



Estrutura e Organização


Assim como em “A visita cruel do tempo”, a autora ousa avançar para um futuro próximo. O capítulo “Lulu 2032” é todo escrito por meio de frases, de certa forma independentes, que formam um tipo de lista de instruções baseadas na vivência de uma espiã que expõe o que aprendeu em seu trabalho de campo. 

 

Para quem acompanha a autora, como eu, esse capítulo pode soar familiar, afinal ele já foi inteiramente publicado na revista The New Yorker como um conto escrito por meio de tuítes em 2012 que foi batizado de “Black box”, já traduzido para o português como “Caixa Preta”. Podemos fazer um paralelo com o capítulo escrito por meio de PowerPoint em “A visita cruel do tempo”.


Há um capítulo inteiro escrito na primeira pessoa do plural “nós”. Afinal, somos apresentados nele, ao ponto de vista de duas irmãs que passaram juntas os mesmos perrengues da separação dos pais e do quase abandono da mãe, que era uma acadêmica em busca de defender sua tese.

 

São em momentos como esses que notamos que Jennifer Egan é uma autora corajosa, criativa e muito precisa. Sua escrita não se resume apenas em ser diferente e inovadora, ela tem um compromisso com a história e é nesse ponto que “A casa de doces” surpreende. Temos um mosaico muito complexo, que visto de perto parece um monte de cacos de cerâmica, mas assim que nos afastamos da leitura começamos a compreender sua arte por inteiro.




A autora estadunidense Jennifer Egan

Não recomendaria esse livro para pessoas acostumadas com a literatura de superficialidades que encontramos hoje em dia aos montes, e isso não é uma crítica, apenas uma constatação de que para ler esse livro é preciso gostar de um certo grau de desafios. Por outro lado, creio que “A casa de doces” é uma leitura imprescindível para quem tem certa inquietude em relação às formas clássicas de escrita e entende a necessidade de moldar a forma ao que a história exige.



Leia nossa resenha de A visita cruel do tempo.







Ficha técnica:

Título: A Casa de doces

Título original: The candy house

Autora: Jennifer Egan

Editora: Intrínseca

Tradução de Débora Landsberg

Ano de Lançamento: 2022

Lançado no Brasil: 2022

Gênero: Romance

384 páginas

 



Fontes:

Editora Intrínseca - A casa de doces é muito Black Mirror. Disponível em: https://intrinseca.com.br/blog/2022/11/a-casa-de-doces-e-muito-black-mirror/ Acesso em: 25 de Jan. 2024

 

Folha de São Paulo. Jennifer Egan dribla distopia e didatismo em livro que fala da memória e da informação. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/09/jennifer-egan-dribla-distopia-e-didatismo-em-livro-que-fala-da-memoria-e-da-informacao.shtml> Acesso em: 25 de Jan. 2024.

 

Gradesaver. The Candy House Character List. Disponível em:https://www.gradesaver.com/the-candy-house/study-guide/character-list Acesso em: 25 de Jan. 2024.

 

The New Yorker. Black Box by Jeniffer Egan. Disponível em:

 

Youtube- Jennifer Egan on "The Candy House". Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=T_jzGbeYkCw> Acesso em: 25 de jan. 2024.

 

Youtube - Jennifer Egan, Author of "The Candy House" Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1_vopQ_ESBA&t=2365s> Acesso em: 25 de jan. 2024.



André Stanley é historiador, professor de Inglês, espanhol e português para estrangeiros. Autor do livro "O Cadáver", editor do Blog do André Stanley. Possui um canal no Youtube onde fala de literatura, design e outros temas. Colaborador do site Whiplash, especializado em Heavy Metal. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys. Também é fotógrafo e artista digital.

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