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Anatomia de uma Queda – Como a sociedade enxerga a queda do outro?


Introdução

Anatomia de uma queda é o mais novo filme da diretora francesa Justine Triet. O filme é um drama de suspense com muitas cenas de tribunal – algo que agrada muito o público norte-americano. Talvez por isso ele tenha sido indicado a 5 Oscars em 2024, levando a estatueta de melhor roteiro original. O roteiro foi escrito pela diretora Justine Triet com a parceria de seu marido, o também cineasta Arthur Harari. O filme conta a história de uma escritora alemã que vive com sua família nos alpes franceses. De repente, ela se torna a principal suspeita do assassinato de seu marido, que é encontrado morto do lado de fora de sua casa pelo filho adolescente do casal que tem deficiência visual.  

 

Resumo

O filme inicia expondo os inconvenientes de uma vida de casal. A protagonista, a escritora Sandra, está sendo entrevistada por uma jovem mulher enquanto seu marido, Samuel, está fazendo uma reforma na casa, ao mesmo tempo, em que ouve uma música no volume máximo. É claro que isso atrapalha a conversa das duas e acaba por interrompê-la mais cedo.


A diretora Justine Triet e Arthur Harari exibindo seus Oscar de melhor roteiro original para "Anatomia de uma queda."

 

Essa cena, a priori banal, tem grande relevância para a construção do filme. Pois, há elementos ali que serão destrinchados no decorrer da história. Notamos, por exemplo, que a conversa entre as duas mulheres não tem aquele aspecto técnico e formal que imaginamos de uma entrevista, parece que há um tipo de conexão mais íntima entre as duas, quase um flerte mútuo. Sandra parece dominar a entrevistadora desviando suas perguntas para assuntos que ela própria parece mais confiante ou confortável em falar a respeito, mostrando desde o início uma veia manipuladora da personagem, algo que será usado contra ela futuramente.

 

Logo após a partida da entrevistadora, vemos que Daniel, o filho do casal, sai para caminhar com seu cachorro guia, o Snoop. Quando volta, o garoto encontra o pai sem vida no chão logo em frente à sua casa. Desesperado, o menino começa a gritar pela mãe que desce as escadas em disparada. Imagine a situação. O filho passeava com o cachorro, portanto, na casa só havia Sandra e o marido que agora está morto. A polícia começa a fazer a perícia, mas já aponta Sandra como a principal suspeita por causar a morte do próprio marido.



Messi, cão que interpreta Snoop em "Anatomia de Uma Queda". Instagram

 

A partir de então somos apresentados a vários planos narrativos vistos de pontos de vistas diferentes. Uma luta judicial se estabelece onde a defesa de Sandra adota a narrativa de que Samuel vinha passando por problemas depressivos e tinha pensamentos suicidas eventualmente, enquanto o promotor público segue na linha de que o relacionamento dos dois não vinha bem e que Sandra matou o marido em um ato de fúria durante uma briga. Ao redor disso, temos o filho que, ao mesmo tempo, em que não acredita que seu pai pudesse ter se matado, também não consegue imaginar sua própria mãe atentando contra a vida de seu pai.

 

Notamos que é um filme sobre a dúvida e sobre a busca da verdade.  Também sobre como as pessoas podem ser infelizes em suas vidas de casadas. Pois, casamento implica em concessões de ambas as partes, e concessões implicam em deixar de ser algo que você sempre foi individualmente para ser alguém que vive sob a sombra de outro alguém. No fim, podemos dizer que esse filme expõe, de forma amedrontadoramente fiel, as mazelas de uma vida compartilhada.

 

Tema Principal:

O filme mostra o ambiente doméstico e as peculiaridades de se morar em um local isolado. Moram em uma casa rústica que parece sempre em reforma. As cenas de tribunal, no entanto, mostram um ambiente formal, onde o teatro das disputas se dá de forma tensa. É nesse ambiente que se dá o confronto de perspectivas entre a defesa e a acusação e onde o comportamento da ré é exposto, assim como o casamento problemático que vivia. A exposição pública de Sandra se parece muito com o que vemos nos cancelamentos virtuais dos dias de hoje.

 


A casa de "Anatomia de uma queda".

A reação das pessoas presentes ao julgamento é bem explorada, e podemos ver na cara dos jurados a expressão da dúvida. Sandra é retratada pela acusação como uma pessoa libertina, portanto, não confiável. A defesa, por sua vez, busca mostrar que Sandra é simplesmente humana. Cometeu erros que qualquer pessoa que vive em um matrimônio está sujeita a cometer.


O matrimônio é o ponto central das disputas de narrativa. Vemos aqui, uma mulher com uma carreira consolidada no mercado editorial vivendo em um país que não é o seu, falando uma língua que não é a sua. Aliás, até mesmo a questão linguística aparece nas discussões do casal. Sandra era alemã e não falava bem o francês, Samuel era francês e não falava bem o alemão, portanto, ambos se comunicavam em inglês, que era um tipo de língua franca ali naquele recinto.

 

Samuel era professor e também escrevia. Sua insegurança diante da esposa escritora foi exposta durante as incursões do advogado de acusação. Aliás, a vida do casal vem sendo exposta progressivamente durante o julgamento, demonstrando assim como o título sugere – a anatomia da queda de uma vida a dois que terminou na morte de um dos envolvidos.

 

Mas o que causou a morte de Samuel? Ele se jogou do último andar de sua casa com a intenção única de se matar, ou ele foi empurrado por sua esposa em um acesso de raiva. O filme só mostra o cadáver, não mostra como ele se tornou um cadáver. E é justamente isso que constrói a dúvida que será o motivo da disputa judicial.

 


Sandra Hüller interpreta a escritora alemã Sandra no thriller "Anatomia de uma Queda" Divulgação/Diamond Films

Tanto a defesa quanto a acusação levam ao tribunal técnicos e peritos que irão reconstruir a queda de Samuel. Apresentando elementos materiais que corroboram suas perspectivas.  Conforme o confronto judicial se estabelece, a verdade parece cada vez mais distante. Notamos que independentemente do resultado que o julgamento terá, a verdade nunca aparecerá. E isso não é um demérito, pois a arte do direito está na elaboração da melhor história e principalmente na forma de apresentá-la.

 

Em muitos casos, criar uma história convincente significa dar a sua audiência o que eles esperam. Ou seja, muitas vezes somos levados a abandonarmos nosso pensamento racional, negligenciando elementos técnicos e factuais, devido à nossa tendência de acreditar facilmente em uma narrativa bem construída. E é possível notar um nítido domínio da cultura patriarcal francesa nos argumentos da acusação, assim como nas feições incrédulas dos membros do júri e nas ações moralistas da juíza, que parece ter comprado a versão da acusação.

 

Ao ter sua vida exposta no tribunal, se descobriu que Sandra tinha traído seu marido com outras mulheres. Isso adiciona certo peso à imagem que a acusação busca construir na mente dos jurados, de uma mulher sem qualidades morais. Seu sucesso profissional contrastava com o aparente ostracismo do marido, como se ela estivesse descumprindo uma regra clara da sociedade, onde se espera que a esposa viva sob a sombra do marido.

 

Ou seja, "Anatomia de uma Queda" aborda as questões mais elementares da vida de um casal sem apelar para os clichês da cultura dos coaches de relacionamento. Parece fácil compreender que no início de uma união afetiva entre duas pessoas que se amam, pode parecer uma jornada suave e serena, mas conforme o tempo passa, surgem os desafios que testam a força desse vínculo.

 

Questões financeiras, diferenças de opinião, pressões externas e mudanças pessoais, entre outros, são elementos que podem sacudir a estabilidade do relacionamento. Isso é que todos sabemos de antemão, mas como esses problemas podem escalar para distúrbios mentais que eventualmente geram agressões verbais e físicas e automutilação, chegando ao extremo de uma morte criminosa ou um autoextermínio? Não sabemos o que ocorreu aqui. Isso parece ser o que esse filme se presta a analisar com o público. Jogando todas essas questões no âmbito social. Como a sociedade enxerga a queda do outro? Há diferença se esse outro é um homem ou uma mulher?

 

As questões psicológicas entram em palco quando a acusação chama o psicólogo de Samuel para testemunhar. O psicólogo tenta recriar no tribunal a vida psicológica de seu paciente baseado no que ele relatou sobre o casamento, o psicólogo estabelece o que ele entendeu como verdade. Samuel vinha passando por um relacionamento abusivo devido às cobranças de Sandra, principalmente após o acidente que levou o filho do casal a perder a visão. Nesse momento, Sandra interrompe seu próprio advogado de defesa para se manifestar por si própria, segundo ela:

 

“O que você diz é apenas uma pequena parte da situação, entende?... Eu acho que é possível que Samuel precisasse ver as coisas do jeito que você as descreve, mas se um terapeuta estivesse me acompanhando, ele poderia estar aqui também dizendo coisas horríveis sobre Samuel.”

E ela finaliza com a pergunta: “Isso seria verdade?”

 

Ou seja, Sandra tenta apontar que a verdade que a promotoria pública constrói sobre ela com o depoimento do terapeuta de Samuel é uma verdade relativa, como ele via seu relacionamento, enquanto ela poderia ter outra verdade, mas a verdade material, ou a verdade de fato escapa às verdades relativas. Pois cada um constrói sua verdade interpretando as evidências com seus próprios filtros e crenças. E nisso, Sandra era muito boa, pois era uma escritora conhecida por escrever romances usando sua própria vivência como matéria-prima. Aliás, essa sua habilidade criativa serviu à acusação como ingrediente primordial na complexa construção da personalidade de Sandra como uma mulher indigna e infiel.

 

Sintetizando, podemos dizer que Anatomia de uma queda é um filme de tribunal, que traz questionamentos interessantes sobre guerra de narrativas e como nós somos, em geral, movidos por uma história bem elaborada.

 



 

Ficha técnica:

Título: Anatomia de um crime

Título original: Anatomie d’une chute

Direção: Justine Triet

Roteiro: Justine Triet e Arthur Harari

País: França

Ano de Lançamento: 2023

Lançado no Brasil: 2024

Gênero: Policial, Drama, Crime, Suspense

Duração: 2h 31min












André Stanley é historiador, professor de Inglês, espanhol e português para estrangeiros. Autor do livro "O Cadáver", editor do Blog do André Stanley. Possui um canal no Youtube onde fala de literatura, design e outros temas. Colaborador do site Whiplash, especializado em Heavy Metal. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys. Também é fotógrafo e artista digital.

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