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Resenha - Vivendo como uma Runaway, a autobiografia de Lita Ford

Atualizado: 8 de mar. de 2023


Imagem: Capa do Livro "Vivendo como uma Runaway" e capa da revista Metal 1988: By André Stanley
“As pessoas ficavam chocadas com o fato de uma mulher tocar rock pesado. Naquela época, isso era inédito.”
Lita Ford


The Runaways, o filme dirigido por Floria Sigismondi, mostra como um grupo de garotas recrutadas por um produtor musical doidão e influente, saiu do anonimato para o estrelato em meados da década de 70. O filme de 2010 optou por direcionar os holofotes para Joan Jett e Cherrie Currie – guitarrista e vocalista da banda THE RUNAWAYS – interpretadas pelas atrizes Kristen Stewart e Dakota Fanning respectivamente. As outras três integrantes do grupo, a baterista Sandy West, a baixista Jackie Fox e a guitarrista solo Lita Ford são praticamente figurantes no filme.


Não sei vocês, mas quando assisti ao filme eu tive a impressão de que Lita Ford foi escolhida pela roteirista – a própria diretora Floria Sigismondi – para ser a chata do rolê. Aquela mina que gosta de falar umas verdades inconvenientes na pior hora possível. Não me surpreenderia se a própria Lita Ford tivesse tido também essa impressão. Fato é que ela decidiu lançar um livro contando sua versão da história.


“Vivendo como uma Runaway” a autobiografia de Lita Ford foi lançada em 2016 e tem prefácio de Dee Snider (TWISTED SISTER). O livro já foi alvo de algumas polêmicas desde seu lançamento e vira e mexe alguém vem à tona criticá-lo por expor alguns podres de vários astros do Rock que tiveram algum tipo de relacionamento com a bela loira. A questão é que Lita Ford se tornou uma figura importante na cena Hard Rock dos anos 80, quando decidiu lançar-se em carreira solo e ela veio a se relacionar intimamente com muitos personagens icônicos desse período, alguns com status de heróis como os influentes guitarristas Ritchie Blackmore (DEEP PURPLE, RAINBOW), Glen Tipton (JUDAS PRIEST) e Eddie Van Halen (VAN HALEN).


Apesar de não os depreciar como artistas, há passagens do livro que relatam um lado não muito cortês de alguns desses astros sagrados do Rock. Talvez o caso mais conhecido, e que já foi bem comentado na imprensa especializada, seja, os relatos de violência física sofridos pela guitarrista quando era noiva de Tony Iommy do BLACK SABBATH. Segundo Lita, por duas vezes ela foi vítima de espancamentos por parte de Iommy sem motivo aparente. Uma das vezes ela quase foi atingida por um banco de madeira, ocasião em que teve que fugir para casa de um de seus ex-namorados que morava ali por perto, ninguém mais, ninguém menos que Nikki Sixx, baixista do MÖTLEY CRÜE.


O Livro de 336 páginas é dividido em 2 partes. A primeira parte conta sobre sua infância e adolescência passando pelo seu recrutamento para entrar no The Runaways, até o final da banda em 1979. Sobre isso Lita diz:


“...depois de sair das Runaways, poderia devorar os garotos da indústria musical sem nenhum problema.” (Lita Ford)

A segunda parte da obra é dedicada à sua carreira solo. Incluindo seu hiato de 15 anos quando se afastou aparentemente para se dedicar a família e a criação dos filhos. Os seus relatos sobre este período também geraram muitas polêmicas que vêm sendo largamente difundidas na imprensa. Lita relata que viveu 15 anos sob a opressão de seu marido – Jim Gillete ex vocalista da banda de Glam Rock NITRO – com quem ela estava casada desde 1995, após o lançamento de “Black” seu último álbum antes de seu “sumiço” da cena musical.


Tirando as partes de treta generalizadas o livro tem histórias muito boas sobre os bastidores do Hard Rock e Heavy Metal oitentista visto pelo olhar de uma das poucas mulheres que se embrenharam por este estilo em uma época de extrema misoginia, quando a cena não dava muito espaço para elas. Nas palavras da própria:


“Minha fantasia era me tornar a rainha do Rock e do Heavy Metal: a única guitarrista do meu nível.” (Lita Ford)

Como podemos notar a loira sexy que tocava Rock era ambiciosa e buscando atingir seu objetivo, Lita ganhou relativo destaque na cena Rock de Los Angeles. Isso no início dos anos 70 era muito raro para uma mulher – quanto mais uma adolescente.


“Não me ocorria, enquanto eu estava crescendo, que eu estava fazendo algo fora do comum por gostar do tipo de música de que gostava. Ninguém me disse que garotas não podem fazer isso.” (Lita Ford)

A jovem guitarrista logo chamou a atenção de Kim Fowley, que não teve dúvida em chamá-la para a nova banda que estava formando, uma banda só de garotas chamada THE RUNAWAYS. Lita entrou na mira de Fowley pela sua capacidade técnica ao tocar Rock, mas sua aparência também era um chamariz para o produtor, que tinha uma certa obsessão por jovens loiras. Alíás, esse era um critério essencial para o recrutamento da vocalista. Ou seja, se Cherrie Currie tivesse cabelos castanhos jamais entraria para a banda. Sobre a formação das Ruaways Lita diz:


“As pessoas testemunharam a magia da visão de Kim Fowley: uma banda de rock só de ninfetas.” (Lita Ford)

Os perrengues que Lita sofreu por ser mulher também foram relatados no livro e ela não poupou nomes. Assim ela relata um encontro inusitado:


“...o pior ofensor, de longe, era a banda Dokken. O guitarrista principal, George Lynch, se aproximou de mim no Country Club, em Reseda, na Califórnia. Achei que ele fosse dizer algo elogioso. Em vez disso, ele olhou para mim da cabeça aos pés e disse com uma voz esnobe, como uma criança de dez anos: “Então... Acho que vocês estão todas... sem a Joan agora”. “Como assim?”, respondi. O quê? “Garotas não tocam guitarra!” (Lita Ford)

Mas felizmente, Lita e as meninas da banda não davam muita bola para esses caras, como ela mesmo diz:


“Sabe, são idiotas como estes que me fazem dar muito mais duro.” (Lita Ford)

A grande maioria dos músicos e bandas respeitavam a audácia da garota com a guitarra que tocava Heavy Metal. Por exemplo:


“O Twisted Sister tocou com a banda Lita Ford. Eles apoiavam muito uma garota na guitarra e sempre torciam por mim.” (Lita Ford).

O vocalista Dee Snider, que se tornou um do melhores amigos de Lita Ford, declarou que:


“Eis uma garota que sabia tocar de verdade! E não estou falando de tocar bem “para uma garota”, estou falando de tocar bem em geral... Lita Ford era exatamente o que o movimento feminino no mundo do rock’n’roll precisava.” (Dee Snider)

A autobiografia de Lita Ford é um livro intenso, cheio de histórias mirabolantes dos bastidores do Hard Rock e Heavy Metal dos anos 80 e é talvez o único que conta com o ponto de vista de uma mulher que viveu na pele a rejeição e a ascensão dentro de uma cena em que a mulher era apenas um “pedaço de carne”, sobre isso a autora é enfática:


“Eu me tornei uma garota na guitarra com credibilidade, e não apenas um pedaço de carne.” (Lita Ford).

Lita mostra estar munida de certo sarcasmo, habilidade mais que necessária ao narrar uma história que envolve sexo, drogas e Rock n’ Roll. Sua veia cômica aparece em várias ocasiões o que torna a leitura bem dinâmica. Uma situação particularmente inusitada foi quando a “Rainha do Heavy Metal” no auge de sua carreira, tendo seus clipes veiculados na MTV quase diariamente, precisou entrar às pressas no banheiro de um restaurante quando por conta de uma disfunção intestinal depois de dias com prisão de ventre e ela teve que dar uma autografo nesta situação.


Vale a pena ler este livro com o mesmo olhar crítico que devemos direcionar a qualquer obra autobiográfica. Afinal é um ponto de vista entre tantos outros. Lita expõe toda sua vida de forma eloquente, por vezes exaltando suas conquistas, outras vezes depreciando a si própria. Sua linguagem coloquial a aproxima do leitor. As vezes temos a impressão de que ela está contando a história na nossa frente. Suas controvérsias com as outras integrantes das Runaways são detalhadamente expostas. Ela fala abertamente de sua vida íntima, inclusive suas experiências sexuais com vários rock stars de sua época. Lita termina o relato expressando sua satisfação por ter sido uma das mulheres que desbravou o mundo machista do Heavy Metal e permitiu que outras depois dela adentrassem a cena.


“O mundo do rock evoluiu para uma linguagem universal que não é mais só para aqueles impulsionados pela testosterona. O caminho está aberto e agora está livre e desimpedido para quem quiser percorrê-lo. Os homens maravilhosos que foram as principais influências musicais em minha vida e ajudaram em minha formação como guitarrista, artista e cantora me ajudaram a me tornar uma líder carismática no mundo masculino do heavy metal.” (Lita Ford)

VIVENDO COMO UMA RUNAWAY – Lita Ford

Trad.: Aline Naomi Sassaki

Editora: Belas Letras

2016

336 págs.




André Stanley é escritor e professor de História, inglês e espanhol. Também atua como designer gráfico e fotografo. É autor do livro "O Cadáver" e editor dos blogs: Blog do André Stanley, Stanley Personal Teacher. Colaborador do site especializado em Heavy Metal Whiplash. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys.

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