Este vídeo é resultado da pesquisa da minha pesquisa para o Mestrado Profissional em História Ibérica pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG), com a orientação da Profª. Drª. Kátia Aparecida da Silva Oliveira.
Eu sempre me preocupei em inserir no processo de ensino-aprendizagem, elementos mais próximos do cotidiano do jovem estudante (educação básica), ao mesmo tempo em que evidenciamos a importância do professor como mediador desse processo considerando o alto número de informações sem averiguação a que esses jovens estão sendo expostos. Nesse sentido, a produção e utilização de vídeos de curta duração e um guia didático de atividades para os professores – e educadores de uma forma geral – me parece coerente com minha intenção de democratizar o processo de ensino-aprendizagem não somente dando mais protagonismo ao estudante, mas também aguçando sua capacidade crítica.
Para isso desenvolvemos uma série de vídeos de curta duração no formato de minidocumentários, explicando de forma didática os aspectos contraditórios sobre a loucura dentro de uma perspectiva histórica e tendo como foco e objeto de estudo o romance Dom Quixote de la Mancha de Miguel de Cervantes. Abaixo reproduzo na íntegra o roteiro utilizado no vídeo e ao final temos o vídeo 1, que é uma introdução sobre o tema.
Transcrição do vídeo
Imagine um homem que de tanto assistir filmes de super-heróis, decide vestir um uniforme, e combater o crime. Imagine que esse mesmo homem desejasse ainda resgatar um tempo que já se foi, quando em sua visão, a vida era melhor e mais justa, como a sociedade reagiria a ele? Seria um louco? Ou um sujeito por demais sensato a ponto de ser o único a enxergar a verdade?
Essa dicotomia entre os defensores dos valores tradicionais de uma sociedade e aqueles que os criticam por talvez terem se tornado obsoletos, é algo recorrente na histórico.
Rupturas nas formas de pensar e agir são sempre dramáticas, pois não ocorrem de forma passiva. Essas ambiguidades sempre foram tratadas pela literatura. Aquelas obras que traduzem melhor os dilemas humanas para as gerações futuras tendem a permanecer como arquétipos nas criações culturais e intelectuais de uma sociedade. E um exemplo é o romance “O Engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha.” de Miguel de Cervantes
Mas podemos usar uma obra de ficção para entender um momento histórico específico?
A literatura pode ser um valioso documento histórico nas mãos de um historiador. Mesmo uma obra de ficção, pode nos revelar como as pessoas de um determinado período representavam seus dilemas sociais, seus sentimentos e seus valores. Em suma, é uma forma de representação dos modos de vida de um determinado povo. A literatura consegue nos transportar para mundos distantes da nossa realidade – distantes no tempo e no espaço – o que faz dela uma importante forma de transmissão cultural. Podemos, através da literatura, assimilar conceitos abstratos e de difícil definição ou compreensão, como a loucura, por exemplo. Mas como a loucura é representada em uma obra literária? A definição de loucura sempre foi a mesma, mesmo em tempos mais remotos?
A loucura foi muito explorada por diversos autores. Foi uma alegoria recorrente durante o século XVI na literatura e nas artes plásticas. O pintor holandês Hieronimus Bosch em sua obra “O navio dos loucos” representa os grupos sociais de sua época e seus abusos em relação aos costumes vigentes. O conceito do Navio dos loucos não é, no entanto, uma criação de Bosch, mas uma alegoria que já era comum nesse período. Bosch provavelmente se inspirou no poema de mesmo nome do alemão Sebastian Brandt de 1498. Nesta obra satírica, Brant enumera os tipos de insensatez de seus contemporâneos e não economiza no sarcasmo.
A Loucura foi personagem principal em um ensaio filosófico do teólogo holandês Erasmo de Roterdã. Em Elogio da Loucura, publicado em 1511, a própria loucura toma a palavra para se exaltar mediante uma sociedade por demais dogmática.
Erasmo demonstrou pela voz da loucura, ou do que seus conterrâneos assim consideravam loucura, uma grande disparidade entre o proselitismo religioso e a realidade que se impunha.
Havia uma necessidade de refletir de forma crítica os rumos que a sociedade estava tomando e as mudanças perceptíveis na forma de conceber o mundo. Por isso autores do renascimento se apropriam da loucura como estratégia literária para criticar a sociedade. O crítico de teatro brasileiro Anatol Rosemfeld nomeia Hamlet de William Shakespeare como
“...a primeira grande obra em que se manifesta certo estado de espírito criado pelo Renascimento, isto é, em que o homem individual, vendo-se como seu próprio sentido e destino, enfrenta, solitário, o mundo – experimenta a falência de todos os valores.” (ROSENFELD, 1996, p. 135)
Contemporâneo de Shakespeare, Miguel de Cervantes criou um personagem, cuja loucura foi capaz de cativar e atravessar os séculos e se tornar um arquétipo do sonhador idealista e seu fiel escudeiro. O romance mais conhecido de Cervantes, “O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha” deu origem ao adjetivo “Quixotesco” para denominar qualquer um que tente mudar o mundo de forma insensata e inconsequente, pois não pesam as consequências de seus atos.
Dom Quixote é um personagem universal que representa não somente uma dicotomia entre o novo e o velho como também entre a razão e a insensatez em uma sociedade em transição. Uma sociedade que enfrentava uma ruptura.
A História está repleta de rupturas e continuidades
Algumas rupturas de tão radicais servem para definir um período histórico. Assim surgiram as divisões didáticas que vemos nos livros de história. Costuma-se dividir o a História em: antiga, medieval, moderna e contemporânea. No entanto, devemos ter em mente que essas divisões só servem para facilitar nossa localização dentro do processo histórico. Não devemos tê-las como conceitos absolutos.
A loucura em Dom Quixote – segundo alguns – representa uma permanência de elementos medievais em uma sociedade que já despontava para a modernidade. Segundo outras leituras, a figura do velho sonhador é uma alegoria de uma mente sensata em um mundo decadente. O que sabemos, no entanto, é que não é possível desvincular o velho Dom Quixote de seu tragicômico estado de demência. Mas como essa sociedade em questão lidava com a loucura?
Como lidar com aquele que não se enquadra nas normas de comportamento vigentes?
Hoje em dia temos soluções distintas. Muitos de vocês podem automaticamente relacionar os doentes mentais – ditos loucos – com o tratamento em instituições psiquiátricas, algo que não se aplica ao século XVII de Cervantes. Aliás, o tratamento clínico da loucura é muito recente.
Qual teria sido a solução encontrada pelos familiares de Dom Quixote depois que a loucura se instalou no velho senhor?
Abordaremos isso no próximo vídeo
Até nosso próximo encontro...
André Stanley é historiador, professor de Inglês, espanhol e português para estrangeiros. Autor do livro "O Cadáver", editor do Blog do André Stanley. Possui um canal no Youtube onde fala de literatura, design e outros temas. Colaborador do site Whiplash, especializado em Heavy Metal. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys. Também é fotógrafo e artista digital.
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