Satã, muitas vezes chamado vulgarmente de Diabo, Demônio ou Gramunhão, é um antagonista recorrente na literatura mundial. Seu nome evoca todo um emaranhado de conceitos malignos propagados pela cultura judaico-cristã ao longo dos tempos. No entanto, isso nem sempre foi assim. John Milton – ao final do século XVII – em seu poema épico “Paradise Lost”, nos apresenta um Satã mais próximo de um ideal heroico. Basicamente uma vítima da tirania de deus.
Não é uma ideia original do poeta inglês eufemizar a personalidade desta figura mitológica e recorrentemente maldita, mas seu poema é um dos clássicos da literatura mundial e por isso é recorrentemente visitado por artistas contemporâneos que desejam de alguma forma resgatar essa imagem de rebeldia diabólica. Pois é a visão heroica e épica de Satã, que prevalece hoje em dia em muitos nichos da cultura pop. Podemos notá-la em filmes, séries – Lúcifer, por exemplo – e de forma mais recorrente na música pesada.
As bandas de Rock e Heavy Metal são usualmente conhecidas como propagadoras de um ideal antirreligioso, ou no mínimo, insurgente contra o mainstream – óbvio que com nuances dentro do próprio estilo – e a figura de um anjo caído que decide contestar a autoridade divina, é algo que parece muito conveniente para esta cena musical.
Além de ter inspirado o nome de uma famosa banda britânica de Gothic Metal. O poema “Paradise Lost” de John Milton inspirou muitas letras de bandas de Metal. Fizemos para você, uma seleção de letras de músicas de Rock e Metal que trabalham com a temática de “Paradise Lost”, e vamos identificar traços do Satã miltoniano nesses trabalhos.
O Satã de Milton, de certa forma, transborda o dualismo Deus versus Diabo. Ele nos apresenta um Satã que busca sua individualidade e seu lugar no mundo e para entendermos essa visão de mundo é necessário nos despir da influência maligna que seu nome evoca e procurar fazer uma análise imparcial. Como disse o escritor Vilém Flusser em seu livro “A História do Diabo”, “se queremos fazer justiça, devemos evitar a influência da propaganda anti-diabólica que há tanto tempo deturpa sua imagem”.
Em várias canções de Rock e Metal, há citações diretas retiradas do poema, como “Better to Reign in Hell” do CRADLE OF FILTH, outras vezes, releituras mais contemporâneas feitas a partir da obra de Milton, como “Rattle that Lock”, de David Gilmour (PINK FLOYD), escrita com a colaboração de sua esposa, a escritora Polly Samson. Se há algo em comum entre essas composições, é o fato de realçarem os aspectos revolucionários de Satã. Vamos à nossa seleção:
1- Rattle that Lock – David Gilmour
Talvez o músico de rock mais conhecido que já trabalhou com esse poema seja David Gilmour. Em “Rattle that lock” álbum solo do cantor e guitarrista do PINK FLOYD, lançado em 2015, Gilmour conta com a colaboração de sua esposa, a escritora Polly Samson, para escrever suas letras baseada nos dois primeiros livros de “Paradise Lost”. Sansom disse em entrevista à revista Veja em 2015 que a letra “fala sobre protestar, sobre ter o direito de lutar pelo que você acredita. E ela se relaciona [...] a Paraíso Perdido, de John Milton” (Veja – 2015).
O refrão é repetido várias vezes de forma imperativa como se o enunciador estivesse sugerindo a Satã o que ele deve fazer para se libertar de suas amarras.
“Rattle that lock and lose those chain”
“Sacode essa fechadura e se solte dessas correntes.” (tradução livre)
Assista aqui:
2- Better to Reign in Hell – Cradle of Filth
A banda britânica de Black Metal melódico CRADLE OF FILTH, considerada um ícone do estilo, é conhecida por explorar estilisticamente vários autores clássicos da literatura macabra britânica e o poema de Milton de alguma forma – pelo menos para o principal letrista e fundador da banda Dani Filth – se encaixa neste tema. Na música “Better to reign in hell” vemos uma clara referência a “Paraiso Perdido” na famosa frase dita por Satã: ‘Better to Reign in Hell Than Serve in Heaven’. (melhor reinar no inferno do que servir no céu)
Uma das estrofes da música explicita a rebeldia de Satã diante de Deus.
"I shall bow no more to the dogs of the Lord
Tearing at my carcass heart
I shall fall to my knees only at the keyholes
Of Virtue slipping into bondage masks...
Freewill made me better to reign in hell"
“Não me curvarei mais aos cães do Senhor
Dilacerando meu coração de carcaça
Eu cairei de joelhos apenas para os buracos da fechadura
Da virtude escorregando em máscaras de escravidão
Livre arbítrio me fez melhor para reinar no inferno” (tradução livre)
Assista aqui:
3- Lord of Light – Iron maiden
Os veteranos e também britânicos do IRON MAIDEN, são conhecidos por usarem personagens históricos em suas letras como em “Alexander the Great” que é tipo uma micro biografia de Alexandre Magno da Macedônia, que conquistou todo o mundo conhecido de sua época (séc. III a.c.). Mas talvez a grande fonte de inspiração do pessoal do Iron Maiden seja a literatura, principalmente os clássicos da literatura britânica. “The Evil That Men Do”, por exemplo, foi inspirada em “Júlio César” de William Shakespeare. “Brave New World” é uma clara referência ao romance de mesmo nome de Aldous Huxley.
A clássica “Rime Of The Ancient Mariner” também foi inspirada em um clássico poema da literatura britânica de mesmo nome escrito por Samuel Taylor Coleridge no final do século XVIII.
Como já era de se esperar, em pelo menos uma ocasião, a “Donzela de Ferro” se inspirou em “Paradise Lost” de Milton. Podemos ouvi-la no álbum de 2015, “A Matter of life and death” em uma música chamada, “Lord of light” que menciona a saga de Satã para tentar se libertar de sua prisão infernal. Leia trecho da letra:
“Spiral path leads through the maze
Down into the fiery underworld below
Fire breathing lead the way
Lucifer was just an angel led astray”
“Caminhos em espiral levam pelo labirinto
Lá para baixo no submundo selvagem
O fogo ilumina o trajeto
Lúcifer era apenas um anjo que se perdeu.” (tradução livre)
Assista aqui:
4- Control the Divine – Blind Guardian
A banda alemã de Power Metal, BLIND GUARDIAN, também é conhecida por se valer da literatura para escrever suas letras – em sua maioria, escritas pelo vocalista Hansi Kürsch. Já viajaram profundamente pelo mundo fantasioso do britânico J.R.R. Tolkien em mais de um álbum. Os clássicos tolkianos, “O Senhor dos Anéis” e “O Silmarillion” são fontes inesgotáveis para esses caras.
Também já embarcaram em outros nomes de peso da literatura britânica como, Lewis Caroll e T.H. White. É evidente que não poderiam deixar de explorar o clássico poema “Paradise Lost” de Milton. Fizeram isso em “Control de Divine”, música do álbum “At The Edge Of Time” de 2010. A letra entra na vibe de falar da revolta de um Satã ressentido por sofrer a punição divina e engajado em seu discurso de liberdade.
“First amongst equals
We're bound to no law
There's no one before us
Ethereal sons
Now disobey
Awake and arise
You'll be free”
“Primeiro entre seus iguais
Não estamos atados a nenhuma lei
Não houve ninguém antes de nós
Filhos etéreos
Agora desobedeçam
Acordem e se levantem
Serão livres” (tradução livre)
Assista aqui:
5- Archangel – Amaranthe
Mais recentemente, os suecos do Amaranthe também exploraram o poema “Paradise Lost” de Milton, até fazem alusão a elementos do livro no videoclipe da música. Trata-se de “Archangel” do álbum “Manifest” de 2020. Sobre a letra da música a banda declarou: “Um antigo conto da queda do anjo Lúcifer Morningstar foi interpretado como uma tragédia grega no seminal ‘Paraíso Perdido’ de John Milton, e é dessa perspectiva que contamos uma breve, porém significativa história de ganância, traição e orgulho exagerado – um tema muito familiar e contemporâneo.”
“Archangel has fallen down
I sing for the fallen angels
I carry them under my wings
Frozen but still undefeated, for the abandoned I sing”
“O Arcanjo caiu
Eu canto pelos anjos caídos
Eu os carrego sob minhas asas
Congelado, más ainda invicto, para os abandonados eu canto”
(tradução livre)
Assista aqui:
6- Paradise Lost – Symphony X
A banda de Metal Progressivo americana SYMPHONY X também já usou o poema de Milton para intitular um de seus álbuns. “Paradise Lost” de 2007 traz uma capa que faz referências imagéticas ao inferno miltoniano, no entanto, de uma forma futurista. Na música “Paradise Lost’ eles falam de um protagonista que parece triste pela sua condição de prisioneiro dos infernos.
“Looking down from ethereal skies
Silent crystalline tears I cry
For all must say their last goodbye, to paradise”
“Olhando para baixo de céus etéreos
Eu choro silenciosas lágrimas
Pois todos devem dizer seu último adeus ao paraíso.” (tradução livre)
Assista aqui:
7- Paradise Lost – Paradise Lost
Terminaremos nossa lista com uma música da banda que tem o privilégio de levar o nome do clássico poema de Jon Milton. Em seu primeiro álbum, “Lost Paradise”, de 1990, os veteranos do Gothic Metal britânico, PARADISE LOST, faziam um Death Metal cru, com vocais extremamente guturais. É neste álbum que há a canção “Paradise Lost”, onde falam de um elemento bem presente no poema de Milton. A queda de Lúcifer, que segundo o narrador miltoniano cai por 9 dias até encontrar o fundo do inferno. Após esse evento Lúcifer passa a ser chamado de Satã – O anjo caído. Leia parte da letra.
“Blinding, running through the eternal maze
Surrounded by people the same
Not knowing this place as the darkness falls above...
Will we ever see the sun deteriorate away?”
“Cegando, correndo pelo labirinto eterno
Rodeado por pessoas da mesma forma
Sem conhecer esse lugar enquanto a escuridão cai sobre nós
Será que veremos o sol se deteriorar?” (tradução livre)
Não encontrei a música “Paradise Lost” no Youtube, mas no link abaixo você poderá ouvir o álbum “Lost Paradise” completamente. “Paradise Lost” é a terceira música.
Assista aqui:
Ler o livro “Paradise Lost” de John Milton não é tarefa fácil. É considerado uma obra complexa, pois é repleta de referências bíblicas e mitológicas que podem fugir ao conhecimento de um leitor leigo no assunto, mas vale a pena tentar. Infelizmente não há uma versão muito amigável para a língua portuguesa. A versão clássica que podemos encontrar em domínio público foi traduzida para um português de Portugal e ainda por um autor do início do século XIX o que torna o texto bem complicado para um leitor contemporâneo. Mas se você consegue ler em inglês, há uma versão chamada “John Milton’s Paradise Lost In Plain English” que é uma versão do poema em forma de romance em inglês moderno, o que facilita bastante a compreensão. E você pode adquiri-lo por apenas R$ 1,99 em sua versão E-book no site da Amazon. (Informação de 25/02/2022)
Mas se não estiver a fim de ler a obra épica, é só acessar seu serviço de streaming preferido – ou pegar seus CDs ou LPs – e curtir as canções citadas aqui.
Link para download da única versão em português disponível em domínio público: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/paraisoperdido.pdf
Fontes:
· Leia mais em: <https://whiplash.net/materias/curiosidades/140781-blindguardian.html> Acesso 25 de fev. 2022
· Rockbizz - Amaranthe Divulga Clipe Do Novo Single Archangel – disponível em: <https://www.rockbizz.com.br/amaranthe-divulga-clipe-do-novo-single-archangel/> Acesso em: 25 de fev. 2022
· Escamandro: POESIA TRADUÇÃO CRÍTICA – Milton e um paraíso mais de uma vez perdido – Disponível em: <https://escamandro.com/2012/06/13/milton-paraiso-perdido/> Acesso: 24 de fev. 2022
· The Tumultuous Life and Enduring Influence of John Milton, Poet, Radical and Cultural Icon, Celebrated in Major Exhibition at The New York Public Library. Disponível am: <https://www.nypl.org/press/press-release/2008/02/12/tumultuous-life-and-enduring-influence-john-milton-poet-radical-and?iamaselector=> Acesso em 13 de setembro de 2021.
· Guardião cego. O grupo "heavy metal" que promove a leitura. – Disponível em: <https://www.actualidadliteratura.com/pt/grupo-blind-guardian-heavy-metal-promove-leitura/> Acesso: 22 de fev. 2022
· Letrista do Pink Floyd, Polly Samson fala sobre novo livro. Disponível em: https://veja.abril.com.br/cultura/entrevista-letrista-do-pink-floyd-polly-samson-fala-sobre-novo-livro/ Acesso em: 12 de setembro de 2021.
André Stanley é escritor e professor de História, inglês e espanhol. Também atua como designer gráfico e fotografo. É autor do livro "O Cadáver" e editor dos blogs: Blog do André Stanley, Stanley Personal Teacher. Colaborador do site especializado em Heavy Metal Whiplash. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys.
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