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Delírio de Laura Restrepo – Entre a loucura e os códigos sociais

Atualizado: 6 de abr.



“Soube que havia acontecido algo irreparável naquele momento em que um homem abiu a porta desse quarto de hotel e vi minha mulher sentada ao fundo, olhando pela janela de uma maneira muito estranha.”


Hoje vamos falar de "Delírio", um romance insano da autora colombiana, Laura Restrepo. Publicado há exatos 20 anos, este livro é um mergulho angustiante na complexidade da mente humana, além de um relato histórico dos desafios vividos pelo povo colombiano durante a dominação dos poderosos cartéis narcotraficantes e das ações guerrilheiras das FARCS. “Delírio” deu à autora o Prêmio Alfaguara de melhor romance em 2004.

 



Após uma curta viagem a trabalho, Aguilar, um ex-professor de literatura, encontra sua esposa em um quarto de hotel em um estado de completa loucura. Assim começa essa história que gira em torno da busca desesperada de Aguilar para descobrir o que deixou sua mulher naquele estado de alienação.


 

Durante sua busca pela solução desse mistério, o ex-professor universitário que, após o fechamento da Universidade onde lecionava, exercia a função de comerciante de ração para cachorro, foi mergulhando cada vez mais fundo no tortuoso passado de sua esposa.

 




A história tem como pano de fundo os aspectos históricos vividos pela Colômbia no decorrer da década de 1980. Guerrilheiros lutando para assumir o poder e a ascensão dos maiores e mais poderosos cartéis de narcotraficantes do mundo, que tiveram como figura central o criminoso mor, Pablo Escobar.

 



Além das questões históricas de cunho social, caras para a autora que foi militante do movimento M-19 – um movimento armado de cunho marxista que surgiu no início da década de 1970 – há também uma preocupação com a dicotomia entre a racionalidade representada pelo marido com background acadêmico e a insensatez representada pela esposa delirante.

 

Uma dicotomia que parece ter suas fronteiras borradas por aspectos tradicionais da cultura colombiana, como a sexualidade reprimida ou a ritualização da vida cotidiana como forma de compreensão do mundo sem questionar sua estrutura adoecida. Com isso a loucura de um indivíduo pode ser vista como o resultado de uma estrutura social enferma.



O enredo adiciona outros personagens de caráter duvidoso, como uma tia que aparece do nada oferecendo ajuda a Aguilar para com sua esposa enferma. Midas McAlister é um velho amigo da família Londoño que parece ter apresso por Agustina, mas sempre a trata como um objeto, chamando-a de “minha boneca” ou com algum outro tratamento passivo-agressivo. 

 


O livro tem quatro planos narrativos que vão se revezando, trazendo diferentes vozes à tona, sempre tendo um narrador como mediador, utilizando largamente o discurso indireto livre, expondo as divagações dos personagens que frequentemente se perdem em seus próprios pensamentos.

 

Laura Restrepo adota uma escrita compacta, sem separação de parágrafos, mas sim em blocos narrativos longos, como se quisesse que o leitor não pausasse uma sequência narrativa sob a premissa de que seu raciocínio pode se perder caso descontinue a leitura. Uma característica encontrada em algumas obras de Saramago, romancista que parece exercer certa influência na autora, que o menciona mais de uma vez no decorrer desse romance.

 

Essa obra oscila de forma eficaz entre o romance investigativo e o romance histórico, trazendo nas entrelinhas uma visão crítica em relação aos abusos de uma família tradicional conservadora e a imposição de narrativas históricas construídas por uma elite patriarcal que se tornam verdades oficiais que não se distinguem muito dos dogmas religiosos.

 

Inclusive, não sabemos claramente de onde vem o dinheiro que sustenta a família Londoño há décadas, mas fica implícito que, na Colômbia dos anos 80, dificilmente uma família se mantém próspera sem o envolvimento e a conivência com o domínio hegemônico do narcotráfico. Essas relações obscuras de certa forma são denunciadas pela loucura de Agustina, que se perde em um emaranhado de narrativas incoerentes e, ao mesmo tempo, inquestionáveis.

 


Agustina, durante vários anos, procurou viver sob o jugo ritualístico da família, abstendo-se de formular seus próprios questionamentos sobre os eventos que ocorriam no seio familiar. Tanto é que, desde muito jovem, Agustina ritualizava todos os seus atos, usando um vocabulário limitado, como se rezasse uma missa, até mesmo ao relatar suas experiências a alguém.

 


No romance, dificilmente conseguimos distinguir o estado de loucura clínica de Agustina do prolongado silenciamento de seus anseios pessoais em seu convívio familiar. Luciana Namorato, em um ensaio sobre esse romance, chama esse fenômeno de “violentamento do código”.

 

Há ainda uma veia artística no comportamento de Agustina que torna sua loucura ainda mais indistinguível se levarmos em conta que o próprio fazer artístico tem seu grau de incoerência e rebeldia em relação à normalidade, podemos notar essa mesma condição no avô materno da protagonista que era um compositor imigrante da Alemanha e demonstrava a mesma capacidade de alienação que sua neta viria a ter.

 

Destaca-se nesse romance seu aspecto misterioso. Tanto o protagonista Aguilar, quanto o leitor permanecem imersos em uma aura de mistério amplificada pela sua característica fragmentária. O enredo é construído por meio de flashbacks retirados dos interstícios mais sombrios – e muitas vezes inacessíveis – da mente humana, expondo a fragilidade de nossa vida psicológica que muitas vezes clama por explicações claras e concretas. 

 

Para alguns leitores mais contemporâneos, esse romance pode soar impreciso e incoerente por não mostrar uma história linear e objetiva, mas a verdade é que sua estrutura está em total sintonia com o tema, afinal a própria definição de loucura é imprecisa e incoerente. A historiadora Luciana Namorato faz uma análise muito interessante sobre esse tema. Segundo ela:

 

“Deparando-se com a narrativa violentada e incoerente de Delírio, o leitor aproxima-se da situação experimentada pela protagonista e compartilha com Aguilar a frustração de quem se propõe a compreender a loucura, confiando justamente nos pressupostos por ela questionados. Ao fazer refletir na forma o conteúdo de seu romance, Restrepo ressalta também as limitações do personagem (e, por extensão, do cidadão) marginal como instrumento de denúncia e intervenção na sociedade, e conduz o leitor a reconhecer a delicada fronteira que separa a vida cotidiana do delírio ou, em outras palavras, a razão da insanidade.” (NAMORATO, p.104, 2018)

 


Laura Restrepo

Em síntese, "Delírio" é uma leitura imprescindível para quem gosta de um bom romance histórico, ou de uma bela história de investigação detetivesca. Podemos dizer que esse romance descortina a hipocrisia de uma estrutura social presente na Colômbia do século XX através da história de uma família de classe média e suas relações obscuras. Laura Restrepo oferece uma perspectiva provocadora sobre a loucura como sequela de uma estrutura sócio-política desmantelada, sustentada por uma narrativa envolvente. Recomendo este livro a todos que desejam aprofundar seu conhecimento sobre a cultura colombiana e aumentar seu repertório de obras da riquíssima literatura hispano-americana.

 




Ficha técnica:


Título: Delírio

Autora: Laura Restrepo

Editora: Alfaguara

Ano de Lançamento: 2004

Lançado no Brasil: 2008 (Companhia das letras)

Gênero: Romance hispano-americano

342 páginas

 






Fontes:

QUADRADO, Lauro Iglesias. A geografia literária em Delírio, de Laura Restrepo. Revista Latino-Americana de História, v. 9, p. 32-48, 2019.

RESTREPO,Laura. Delirio. Bogotá: Alfaguara, 2004.

SCHWANTES, Cíntia; Valeska Zanello (Org.). Gênero e loucura na literatura. 1. ed. Curitiba: Appris, 2018.



André Stanley é historiador, professor de Inglês, espanhol e português para estrangeiros. Autor do livro "O Cadáver", editor do Blog do André Stanley. Possui um canal no Youtube onde fala de literatura, design e outros temas. Colaborador do site Whiplash, especializado em Heavy Metal. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys. Também é fotógrafo e artista digital.



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