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A Visita Cruel do Tempo: Um romance cujo protagonista é o tempo

Atualizado: 26 de jan.


Começou como sempre começa, no banheiro do Hotel Lassimo. Sasha estava retocando a sombra amarela dos olhos no espelho quando reparou em uma bolsa no chão ao lado da pia, que devia pertencer à mulher cujo jato de urina se podia vagamente escutar através da porta do cubículo semelhante à de um cofre-forte...

A Visita Cruel do Tempo é uma obra que esbanja inovação. A norte americana Jennifer Egan cria um set de personagens que não vivem diretamente uma mesma história, mas que em algum momento de suas vidas entram em contato e dividem o mesmo espaço e tempo. Podemos dizer que se trata de uma série de contos independentes que, no entanto, estão em total sintonia uns com os outros.


A autora utiliza uma série de formas narrativas, hora em primeira pessoa, hora em terceira pessoa. Ela narra acontecimentos ocorridos dentro de um período de 50 anos. Mas é o leitor que deve se orientar e tentar entender em que época cada um deles está vivendo.


Em um conto/capítulo inteiro Egan se utiliza de gráficos criados no “Power Point” que na história foram feitos por uma personagem infantil para explicar de forma simplista um momento chave da vida de Sasha Blake, mãe da criança, que é protagonista de um dos contos do livro. A garota faz uma apresentação de slides explicando como sua família se relaciona e como seu irmão Lincoln que sofre de autismo é fascinado por pausas de músicas de Rock n’ Roll.


Esse romance desafia o leitor a construir a história em sua memória através de fragmentos perdidos no tempo vivido por pessoas diferentes que eventualmente se encontram. Por isso uma única leitura pode não ser suficiente. Esse livro merece uma reflexão mais ampla e uma maior dedicação. Jennifer Egan o conduz por uma série de pontos de vistas e de historietas subjetivas para que o leitor consiga adicionar sua própria reflexão sobre a crueldade do tempo. São personagens extremamente humanos que passaram por desilusões amorosas, problemas com drogas, obsessões compulsivas e perdas.




Ou seja, na falta de um personagem central na história, o tempo se torna o grande protagonista. Pois o tempo é soberano e não há uma só personagem desse livro que não esteja sofrendo pela ação dele. Como o produtor musical Bennie Salazar que começou sua carreira como baixista de uma banda punk que não prosperou e sua secretária cleptomaníaca que certa vez fugiu para a Europa em busca de aventuras e foi resgatada pelo seu tio, que era um tremendo de um vigarista.


Este romance foge ao convencionalismo do romance americano atual. Se utiliza de vários elementos da cultura pop americana, como bandas punk tentando seu lugar ao sol na década de 1970, roqueiros decaídos tentando reviver suas carreiras em um momento onde a indústria da música passa por um período crítico. Um dos contos nos leva aos bastidores dessa indústria e sua relação com o jornalismo contemporâneo, que tem total responsabilidade pela construção de celebridades rentáveis.



Se podemos fazer um paralelo dessa obra com alguma outra, eu diria que na forma ele se aproxima do livro “A Festa” do escritor brasileiro Ivan Ângelo que se utiliza de fragmentos narrativos diversos para chegar a construir um romance completo. Mas essa comparação termina aqui, pois as personagens de Egan são muito profundas e sofrem as metamorfoses causadas pelo tempo. Diferentemente das personagens de “A Festa” que são todas caricatas e de pouca ou nenhuma profundidade.


E se a obra de Ivan Ângelo é fruto do momento político em que o autor vivia – Ditadura Militar no Brasil. O Livro de Jennifer Egan é fruto de sua própria reflexão sobre o tempo. A crítica de Jennifer Egan aparece vez ou outra, quando deixa claro que a indústria musical é uma convenção de cafajestes, ou quando critica através de um dos contos a hipocrisia da mídia americana e os profissionais que trabalham nos bastidores para criar uma imagem generosa de fascistas autoritários.




Uma pequena reflexão sobre o título do livro que apesar de ter recebido uma bela versão em português, não está muito bem relacionado ao título original em inglês que é “A Visit from the goon squad”. A origem do termo Goon Squad vem dos grupos de capangas arregimentados por empresários para literalmente espancar os trabalhadores que queriam formar sindicatos para exigirem direitos básicos para sua classe. Isso lá na década de 1920 nos EUA, com o tempo o termo se generalizou e passou a ser usado para qualquer grupo de capangas que usava a violência física para persuadir as pessoas a mudarem de ideia. Goon seria como chamamos em português um “brutamontes”.


Por isso esse termo é usado pela autora para se referir ao tempo. Pois o tempo é implacável, violento e persuasivo. Se você se recusa a mudar, ele te espanca tanto que o deixa irreconhecível para as novas gerações. Ele te constrange, restringe sua liberdade, e ao fim e ao cabo acaba nos matando. Portanto, faz muito mais sentido o termo em inglês. Por outro lado, não saberia como traduzir essa metáfora para o português, então creio que “A visita cruel do tempo”, apesar de destruir a poesia por trás da metáfora da autora, acabou servindo bem ao propósito.



Como um entusiasta das artes gráficas e do design, gostaria de falar sobre as capas feitas para o romance. A capa da versão brasileira foi feita pelo cartunista Rafael Coutinho, e mostra uma imagem bem caótica do que parece ser um rosto desfigurado pela velhice. Os traços erráticos transmite uma sensação de confusão e fragmentação psicológica, o que casa bem com o romance.



Na capa original vemos um sobreposição de imagens de pessoas em cores diversas no que parece a primeira vista uma briga. Isso mostra o aspecto fragmentado da obra que tem vários pontos de vista que se sobrepõem.








Em uma versão posterior podemos ver uma abordagem mais minimalista. Uma mão de guitarra tipo pictograma no centro da capa. Na minha opinião essa versão não representa o que o livro oferece, pois é simplista demais.





Na versão britânica temos uma mulher se protegendo de uma chuva de notas musicais com uma sombrinha. Talvez indicando o quanto a indústria musical manipula nossa existência, a ponto de termos que nos proteger.




A versão em espanhol da obra recebeu o singelo título de "El Tiempo es un Canalla", o que a meu ver, amplifica uma personificação do tempo como sendo uma figura insensível e implacável, além de ter um tom irônico, que está em total sintonia com a obra.



A capa da versão em espanhol optou por uma mensagem visual mais limpa e direta. Uma fita cassete, simbolizando o tempo pretérito da indústria fonográfica, que expele um emaranhado de fita simbolizando a estrutura caótica do livro. Achei interessante a ideia desse design. Eu refiz a capa desse romance com elementos que foram importantes para mim ao ler o livro, para ver o resultado desse desafio inusitado de recapear esse livro é só clicar aqui.


“A visita cruel do tempo” não é um romance convencional. É uma teia complexa de relacionamentos e conexões que se desdobram ao longo do tempo. Egan captura com maestria a atmosfera e o espírito de cada período histórico, desde a vibrante Nova York dos anos 1970 até o ambiente tecnológico e frenético do século XXI.



A autora ainda ousa viajar à um futuro próximo, algum ano da década de 2020, quando as pessoas se encontram aficionadas por aparelhos de comunicação instantânea. De certa forma ela descobre um novo rumo para a indústria fonográfica que terá profissionais trabalhando, outra vez nos bastidores, para que um artista totalmente desconhecido se torne uma celebridade instantânea. É só uma questão de investimento.




Ficha técnica:

Título: A Visita Cruel do Tempo

Título original: A Visit from the Goon Squad

Autora: Jennifer Egan

Editora: Intrinseca

Tradução de Fernanda Abreu.

Lançado no Brasil: 2012

Gênero: Romance Americano/Ficção








André Stanley é historiador, professor de Inglês, espanhol e português para estrangeiros. Autor do livro "O Cadáver", editor do Blog do André Stanley. Possui um canal no Youtube onde fala de literatura, design e outros temas. Colaborador do site Whiplash, especializado em Heavy Metal. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys. Também é fotógrafo e artista digital.

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